É um mundo pequeno,
habitado por animais pequenos
- a dúvida, a possibilidade da morte -
e iluminado pela luz hesitante de
pequenos astros - o rumor dos livros,
os teus passos subindo as escadas,
o gato perseguindo pela sala
o último raio de sol da tarde.
Dir-se-ia antes uma casa,
um pouco mais alta que um império
e um pouco mais indecifrável
que a palavra casa; não fulge.
Em certas noites, porém,
sai de si e de mim
e fica suspensa lá fora
entre a memória e o remorso de outra vida.
Então, com as luzes apagadas,
ouço vozes chamando,
palavras mortas nunca pronunciadas
e a agonia interminável das coisas acabadas.
Manuel António Pina
COMO SE DESENHA UMA CASA, Assírio & Alvim, Lisboa, Outubro 2011
18.11.13
11.11.13
Soneto omnívoro
Pois eu gosto do bucho e da fressura,
dos ossos da suã, da focinheira,
do redanho, do lombo e da assadura,
da morcela de sangue à farinheira;
saboreio o arroz de sarrabulho
e celebro uma quente cabidela,
se o reco for cevado a lavadura
e de pica no chão se fizer ela;
gosto da burzigada, e da fartança
à mesa duma boa rojoada
(algumas bem me acodem à lembrança
quando enfrento uma posta de pescada);
omnívoro que sou, de boa boca,
gostava de gostar de mandioca.
© Domingos da Mota
dos ossos da suã, da focinheira,
do redanho, do lombo e da assadura,
da morcela de sangue à farinheira;
saboreio o arroz de sarrabulho
e celebro uma quente cabidela,
se o reco for cevado a lavadura
e de pica no chão se fizer ela;
gosto da burzigada, e da fartança
à mesa duma boa rojoada
(algumas bem me acodem à lembrança
quando enfrento uma posta de pescada);
omnívoro que sou, de boa boca,
gostava de gostar de mandioca.
© Domingos da Mota
6.11.13
Filhos da época
Somos filhos da época
e a época é política.
Todos os teus, nossos, vossos
problemas diurnos e nocturnos
são problemas políticos.
Quer queiras quer não,
os teus genes têm passado político,
a pele um tom político,
os olhos um aspecto político.
O que dizes tem ressonância,
o que calas tem expressão,
seja como for, política.
Mesmo passeando pelo campo,
dás passos políticos
em solo político.
Poemas apolíticos são também políticos
e lá em cima brilha a lua,
unidade que deixou de ser lunar.
Ser ou não ser, eis a questão.
Que questão, diz, querido.
A questão política.
Nem é preciso ser humano
para ganhar importância política.
Chega que sejas petróleo,
ração composta ou matéria reciclável.
Ou a mesa de debate,
cuja forma foi discutida meses a fio:
em que mesa se negoceiam a vida e a morte?
Redonda ou quadrada?
Entretanto pereciam homens,
morriam animais,
ardiam casas,
tornavam-se os campos bravios
como nos tempos antigos
e menos políticos.
Wislawa Szymborska
Alguns gostam de poesia (Gente na ponte), Antologia, Czeslaw Milosz e Wislawa Szymborska, Cavalo de Ferro Editores, Lda., Lisboa, Março de 2004
e a época é política.
Todos os teus, nossos, vossos
problemas diurnos e nocturnos
são problemas políticos.
Quer queiras quer não,
os teus genes têm passado político,
a pele um tom político,
os olhos um aspecto político.
O que dizes tem ressonância,
o que calas tem expressão,
seja como for, política.
Mesmo passeando pelo campo,
dás passos políticos
em solo político.
Poemas apolíticos são também políticos
e lá em cima brilha a lua,
unidade que deixou de ser lunar.
Ser ou não ser, eis a questão.
Que questão, diz, querido.
A questão política.
Nem é preciso ser humano
para ganhar importância política.
Chega que sejas petróleo,
ração composta ou matéria reciclável.
Ou a mesa de debate,
cuja forma foi discutida meses a fio:
em que mesa se negoceiam a vida e a morte?
Redonda ou quadrada?
Entretanto pereciam homens,
morriam animais,
ardiam casas,
tornavam-se os campos bravios
como nos tempos antigos
e menos políticos.
Wislawa Szymborska
Alguns gostam de poesia (Gente na ponte), Antologia, Czeslaw Milosz e Wislawa Szymborska, Cavalo de Ferro Editores, Lda., Lisboa, Março de 2004
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