26.12.14

AUTOCATACLISMOS

66


boca aberta                                                        boca fechada
não há palavras                                                 há sempre razões
novas                                                                 de desconfiar

Alberto Pimenta

AUTOCATACLISMOS, Pianola, Lisboa, Março de 2014

25.12.14

[Natal é renascer]

     A Albano Martins


Natal é renascer
Homem ou pedra que se esconde
Renascer e nascer mudando
O tempo e o lugar onde

                               1979

Luís Veiga Leitão

POESIA COMPLETA, Organização de Luís Adriano Carlos e Paula Monteiro, Apresentação  crítica de Luís Adriano Carlos, Asa Editores, S.A., Porto, Setembro de 2005

19.12.14

DE PORTA EM PORTA

-- Quem? O infinito?
Diz-lhe que entre.
Faz bem ao infinito 
estar entre gente.

-- Uma esmola? Coxeia?
Ao que ele chegou!
Podes dar-lhe a bengala
que era do avô.

-- Dinheiro? Isso não!
Já sei, pobrezinho,
que em vez de pão
ia comprar vinho...

-- Teima? Que topete!
Quem se julga ele
se um tigre acabou
nesta sala em tapete?

-- Para ir ver a mãe?
Essa é muito forte!
Ele não tem mãe
e não é do Norte...

-- Vítima de quê?
O dito está dito.
Se não tinha estofo
quem o mandou ser
infinito?

Alexandre O'Neill

POESIAS COMPLETAS, Assírio & Alvim, 5.ª Edição, Lisboa, Maio 2007

8.12.14

Confissão

Usarei a palavra que me resta,
por muito que indicie algum desgaste,
a palavra que luta, que protesta,
a palavra que brilha por contraste

com os dias pejados de negrume
que tendem a fazer da depressão
o lugar ideal para o queixume
desdobrar a penosa confissão.

Usarei a palavra que persigo,
que não digo apenas por dizer,
a palavra vital como o presigo,

que pode resistir se a mantiver
a salvo dos ardis do inimigo
ou dalgum salvador que aparecer.

© Domingos da Mota

(poema publicado, com uma leve alteração, na Antologia Confissões, Lua de Marfim Editora, 2014)

7.12.14

SONATA DE OUTONO

Inverno não ainda mas Outono
a sonata que bate no meu peito
poeta distraído  cão sem dono
até na própria cama em que me deito.

Acordar é a forma de ter sono
o presente o pretérito imperfeito
mesmo eu de mim próprio me abandono
se o rigor que me devo não respeito.

Morro de pé,  mas morro devagar.
A vida é afinal o meu lugar
e só acaba quando eu quiser.

Não me deixo ficar. Não pode ser.
Peço meças ao Sol, ao céu, ao mar
pois viver é também acontecer.

José Carlos Ary dos Santos

OBRA POÉTICA, Edições Avante (5.ª edição), Lisboa, 1994

30.11.14

A LEBRE

Para o favorito bater o seu máximo
corre a lebre umas quantas voltas
puxando pelo andamento até que
à hora conveniente sai da pista
sem um gesto um adeus o que se diz nada
e da bancada vêm gritos
porém são para o outro que esse sim
pode ficar na história
efémera que seja dos recordes

também eu tenho pernas
mas nunca tão possantes
e coração
mas o normal da espécie
encosto pois para deixar
passar o favorito: lá vai ele
veloz como uma seta

                                                            Lisboa
                                                                      28/29-IX-95

Fernando Assis Pacheco

RESPIRAÇÃO ASSISTIDA, Assírio & Alvim, Lisboa, Novembro 2003

26.11.14

história de cão

eu tinha um velho tormento
eu tinha um sorriso triste
eu tinha um pressentimento

tu tinhas os olhos puros
os teus olhos rasos de água
como dois mundos futuros

entre parada e parada
havia um cão de permeio
no meio ficava a estrada

depois tudo se abarcou
fomos iguais um momento
esse momento parou

ainda existe a extensa praia
e a grande casa amarela
aonde a rua desmaia

estão ainda a noite e o ar
da mesma maneira aquela
com que te viam passar

e os carreiros sem fundo
azul e branca janela
onde pusemos o mundo

o cão atesta esta história
sentado no meio da estrada
mas de nós não há memória

dos lados não ficou nada

Mário Cesariny

CESARINY UMA GRANDE RAZÃO os poemas maiores, Assírio & Alvim, Lisboa, Março 2007

24.11.14

Máquina do mundo

O Universo é feito essencialmente de coisa
                                                           [ nenhuma.
Intervalos, distâncias, buracos, porosidade etérea.
Espaço vazio, em suma.
O resto, é a matéria.

Daí, que este arrepio,
este chamá-lo e tê-lo, erguê-lo e defrontá-lo,
esta fresta de nada aberta no vazio,
deve ser um intervalo.

António Gedeão

POEMAS ESCOLHIDOS ANTOLOGIA ORGANIZADA PELO AUTOR, Edições João Sá da Costa, Lisboa, 6.ª edição, Novembro de 1999

18.11.14

Primeiro domingo

A tarde estava errada,
não era dali, era de outro domingo,
quando ainda não tinhas acontecido,
e apenas eras uma memória parada
sonhando (no meu sonho) comigo.

E eu, como um estranho, passava
no jardim fora de mim
como alguém de quem alguém se lembrava
vagamente (talvez tu),
num tempo alheio e impresente.

Tudo estava no seu lugar
(o teu lugar), excepto a tua existência,
que te aguardava ainda, no limiar
de uma súbita ausência,
principalmente de sentido.

Manuel António Pina

POESIA, SAUDADE DA PROSA uma antologia pessoal, Assírio & Alvim, Lisboa, Maio de 2011

13.11.14

Manoel de Barros (1916-2014)

O FOTÓGRAFO


Difícil fotografar o silêncio.
Entretanto tentei. Eu conto:
Madrugada a minha aldeia estava morta.
Não se ouvia um barulho, ninguém passava entre
as casas.
Eu estava saindo de uma festa.
Eram quase quatro da manhã.
Ia o Silêncio pela rua carregando um bêbado.
Preparei minha máquina.
O silêncio era um carregador?
Estava carregando um bêbado.
Fotografei esse carregador.
Tive outras visões naquela madrugada.
Preparei minha máquina de novo.
Tinha um perfume de jasmim no beiral de um sobrado.
Fotografei o perfume.
Vi uma lesma pregada na existência mais do que na
pedra.
Fotografei a existência dela.
Vi ainda um azul-perdão no olho de um mendigo.
Fotografei o perdão.
Olhei uma paisagem velha a desabar sobre uma casa.
Fotografei o sobre.
Foi difícil fotografar o sobre.
Por fim eu enxerguei a Nuvem de calça.
Representou para mim que ela andava na aldeia de
braços com Maiakovski - seu criador.
Fotografei a Nuvem de calça e o poeta.
Ninguém outro poeta no mundo faria uma roupa 
mais justa para cobrir a sua noiva.
A  foto saiu legal.

Manoel Barros

ENSAIOS FOTOGRÁFICOS, Editora Record, Rio de Janeiro . São Paulo, 2000


6.11.14

DATA

                        à maneira de d'Eustache Deschamps


Tempo de solidão e de incerteza
Tempo de medo e tempo de traição
Tempo de injustiça e de vileza
Tempo de negação

Tempo de covardia e tempo de ira
Tempo de mascarada e de mentira
Tempo que mata quem o denuncia
Tempo de escravidão

Tempo de coniventes sem cadastro
Tempo de silêncio e de mordaça
Tempo onde o sangue não tem rasto
Tempo de ameaça

Sophia de Mello Breyner

GRADES, Publicações Dom Quixote, Lisboa, Novembro de 1970

1.11.14

FERIDA

Quebra-se o corpo em dois como se
estilhaços de tão puro cristal iniciassem
o alvoroço das terras,
hoje e sempre,
onde o arado não sepulta a espiga e à
espreita do outono
os melros recolhem o seu canto e as suas
asas,
onde os dedos afagam o gelo ou a
chama e o litoral chora os seus mortos
sacrificados
e a ferida não cicatriza e o dia nos
conduz à orla dos túmulos.

José Agostinho Baptista

AGORA E NA HORA DA NOSSA MORTE, Assírio & Alvim, Lisboa, Outubro 1998

31.10.14

SONETILHO DO FALSO FERNANDO PESSOA

Onde nasci, morri.
Onde morri, existo.
E das peles que visto
muitas há que não vi.

Sem mim como sem ti
posso durar. Desisto
de tudo quanto é misto
e que odiei ou senti.

Nem Fausto nem Mefisto,
à deusa que se ri
deste nosso oaristo,

eis-me a dizer: assisto
além, nenhum, aqui,
mas não sou eu, nem isto.

Carlos Drummond de Andrade

60 Anos de Poesia, Antologia organizada e apresentada por Arnaldo Saraiva, Edições «O Jornal», Lisboa, Março de 1985

26.10.14

Lei sálica

As mulheres da família sempre
tiveram um jeito quase póstumo
de existir: guardar o lume
em silêncio, comer depois de
servir os outros, morrer primeiro.

Saíam à hora de ponta do destino
para lerem os caminhos perdidos
e coleccionavam a abdicação
em caixinhas de folha, entre bilhetes
caducados ou dentes de infâncias alheias.

Esperavam a vida toda por uma vida
próxima, de alma presa a alfinetes
no vestido preferido para o enterro,
os passos medidos nas suas varandas
a dar para o fim do mundo.

Retomo-lhes às vezes os gestos
neste meu exílio inventado,
mas acaba aqui: vou encher de corpo
a sombra, mesmo que nem tempo
me reste já para a pesar.

Inês Dias

[Um Raio Ardente e Paredes Frias, Lisboa, Averno], RESUMO a poesia em 2013, edição DOCUMENTA, Sistema Solar, CRL, Março 2014

19.10.14

Depois

Primeiro sabem-se as respostas.
As perguntas chegam depois,
como aves voltando a casa ao fim da tarde
e pousando, uma a uma, no coração
quando o coração já se recolheu
de perguntas e de respostas.

Que coração, no entanto, pode repousar
com o restolhar de asas no telhado?
A dúvida agita
os cortinados
e nos sítios mais íntimos da vida
acorda o passado.

Porquê, tão tardo, o passado?
Se ficou por saldar algo
com Deus ou com o Diabo
e se é o coração o saldo
porquê agora, Cobrança,
quando medo e esperança

se recolheram também sob
lembranças extenuadas?
Enche-se de novo o silêncio de vozes despertas,
e de poços, e de portas entreabertas,
e sonham no escuro
as coisas acabadas.

Manuel António Pina

POESIA, SAUDADE DA PROSA uma antologia pessoal, Assírio & Alvim, Lisboa, Maio 2011

17.10.14

ARTE POÉTICA

Se o poema não serve para dar o nome às coisas
outro nome e ao seu silêncio outro silêncio,
se não serve para abrir o dia
em duas metades como dois dias resplandecentes
e para dizer o que cada um quer e precisa
ou o que a si mesmo nunca disse.

Se o poema não serve para que o amigo ou a amiga
entrem nele como numa ampla esplanada
e se sentem a conversar longamente com um copo de vinho na mão
sobre as raízes do tempo ou o sabor da coragem
ou como tarda a chegar o tempo frio.

Se o poema não serve para tirar o sono a um canalha
ou a ajudar a dormir um inocente
se é inútil para o desejo e o assombro,
para a memória e para o esquecimento.

Se o poema não serve para tornar quem o lê
num fanático
que o poeta então se cale.

António Ramos Rosa

[in Sílex, 1980], O POETA NA RUA, Selecção e Prefácio de Ana Paula Coutinho Mendes, Quase Edições, Junho 2005

14.10.14

Soneto das Horas

      aos queridos mortos

       Durs Grünbein

       E manda-o também esperar a hora
       de dar à luz a sua própria morte (...)

       Rainer Maria Rilke


Por tardia que seja, é sempre cedo
Que se faz a viagem sem regresso,
Não sei se aliviada, se com medo
Da crença de que a vida tem um preço
A pagar no além, depois da morte.
Mas pior que a triste despedida,
Seria apresentar o passaporte
Da alma face à ausência de outra vida.
Outra vida haverá, havendo o ciclo
Do carbono que muda e transmuda,
E mesmo que o faça em contraciclo
Com a essência das coisas, talvez surda
Um ácido, uma base - uma semente
Que fecunde a matriz de um novo ente.

© Domingos da Mota

~

 'Pequeno tratado das sombras'

1.10.14

[Invisível flor. Mas quase]

Invisível flor. Mas quase
que à tona de vir de dentro,
a apetência mental abre
seu espaço de silêncio.
Que um curto perfume, ou árvore
se turbem, o pensamento
pode, torrencial, espraiar-se
sobre a língua. Um halo esplêndido
ficará brilhando, quase
que flor íntima de texto.
Flor invisível que sabe
ser feliz no seu silêncio. 

Paris, 1985

Fernando Echevarría

Olhos de Orfeu, DOZE POETAS DO PORTO, Associação dos Jornalistas  e Homens de Letras do Porto, organização e prefácio de António Roberval Miketen, Dezembro de 1985

18.9.14

0ração

Oiro da noite
pó das estrelas
chuva de cinzas
à flor da pele
matéria negra
matéria fria
língua de fogo

rogai por nós


© Domingos da Mota

Pequeno tratado das sombras, edição Busílis, 2018


10.9.14

OFF PRICE

Que a sorte me livre do mercado
e que me deixe
continuar fazendo (sem o saber)
              fora de esquema
              meu poema
inesperado

          e que eu possa
          cada vez mais desaprender
          de pensar o pensado
e assim poder
reinventar o certo pelo errado

Ferreira Gullar

Em alguma parte alguma, Ulisseia, Edição Babel, Lisboa, Outubro de 2010

6.9.14

ROMANCE OU FALÊNCIA

Posta assim, como uma fraude à escala mundial
a falácia que se esconde nas traseiras
de um título, escrevo como uma puta,
um meteorologista político
que antecipa qualquer vento que sopre
a ouvidos inocentes
as verdades mais inconvenientes

O meu trabalho
é descobrir o nome mais bonito
que se pode dar ao vandalismo,
convencer toda a gente,
como quem esconde um derradeiro eclipse
de que escolher o romance
não é caminhar para a falência

Luís Pedroso

ROMANCE OU FALÊNCIA, Edições Artefacto, Lisboa, Julho de 2014

3.9.14

tantos seres(tantos demónios e deuses

tantos seres(tantos demónios e deuses
cada qual mais ganancioso do que todos)é um homem
(tão facilmente um em outro se esconde;
e não pode o homem,sendo todo,fugir a nenhum)

tão vasto tumulto é o mais simples desejo:
tão impiedoso massacre a esperança
mais inocente(tão profunda é a mente da carne
e tão desperto o que o acordar chama dormir)

assim nunca está o mais sozinho homem só
(o seu mais breve respirar vive o ano de algum planeta,
a sua mais longa vida é a pulsação de algum sol;
a sua menor imobilidade percorre a mais jovem estrela)

--como pode um louco que a si próprio se chama «Eu» supor
que entende um não numerável quem?

E. E. Cummings

livrodepoemas, tradução, introdução e notas de Cecília Rego Pinheiro, Assírio & Alvim, Lisboa, Junho de 1999

1.9.14

Esquisso

A voz que te nomeia
a boca que te chama
a língua que se ateia
não segreda - clama
o espaço que medeia
entre o lodo e a lama
a ira que desfeia
a pele que se descama
o tempo que perpassa
e segue sem parar
e vai e desenlaça
os braços que encontrar
são traços para um esquisso
da vida - ou nem isso


© Domingos da Mota

Pequeno tratado das sombras, Busílis, Dezembro 2018

29.8.14

A máscara fatal de Messalina

     Eu vi gelar as putas da Avenida
       ao griso de Janeiro e tive pena

       Fernando Assis Pacheco



Eu vi andar as pegas na Avenida

num tórrido Verão, ardia Agosto.
Se aquilo que faziam era a vida,
mas que puta de vida! Quanto rosto

sumido e consumido nessa lida,

à mercê do ferrete, e do sol-posto
dissimulado sob a perseguida
labuta marginal. A contragosto,

dei por mim a olhar, a ver de perto

um vulto que exibia o passo incerto
e arrastava os pés, de esquina em esquina.

Mas perdi o seu rasto, a sua sombra;

vislumbrando, a desoras, na penumbra,
a máscara fatal de Messalina.


© Domingos da Mota


Pequeno tratado das sombras, Busílis, Dezembro 2018

27.8.14

AS NOVAS CRIATURAS I

                                                                      a Herberto Helder


Ama, simplesmente ama, se o futuro te angustia,
talvez desejes a terra ao céu,
em breve serás somente semente e língua,
asas debruçadas em inventários.


                     *

Assim ressuscitaria a flor do corpo,
talvez, se não ressuscitasse criatura de artifícios,
como quem, sendo eco, mordesse a terra,
mas como a cobiçaria?

                     *

E cobiçando-a como me entregaria
ao avulso capricho dos novos felinos: lágrimas
como quem desvive a dor
em troca da nudez que Dante não ousou explicar?

João Rasteiro

PEQUENA RETROSPECTIVA DA ENCENAÇÃO, PEQUEÑA RETROSPECTIVA DE LA PUESTA EN ESCENA, Lastura, Enero, 2014

24.8.14

O PAR QUE ME PARECE

   Pesa dentro de mim
o idioma que não fiz,
   aquela língua sem fim
feita de aís e de aquis.
   Era uma língua bonita,
música, mais que palavra,
   alguma coisa de hitita,
praia de mar de Java.
   Um idioma perfeito,
quase não tinha objeto.
   Pronomes do caso reto,
nunca acabavam sujeitos.
   Tudo era seu múltiplo,
verbo, triplo, prolixo.
   Gritos eram os únicos.
O resto, ia pro lixo.
   Dois leos em cada pardo,
dois saltos em cada pulo,
   eu que só via a metade,
silêncio, está tudo duplo.

Paulo Leminski

POESIA BRASILEIRA DO SÉCULO XX DOS MODERNISTAS À ACTUALIDADE, Selecção, introdução e notas, Jorge Henrique Bastos, Edições Antígona, Lisboa, Fevereiro de 2002

21.8.14

QUE VERGONHA, RAPAZES!

Que vergonha, rapazes! Nós pràqui,
caídos na cerveja ou no uísque,
a enrolar a conversa no «diz que»
e a desnalgar a  fêmea («Vist'? Viii!»).

Que miséria, meus filhos! Tão sem jeito
é esta videirunha à portuguesa,
que às vezes me soergo no meu leito
e vejo entrar quarta invasão francesa.

Desejo recalcado, com certeza...
Mas logo desço a rua, encontro o Roque
(«O Roque abre-lhe a porta, nunca toque!»)
e desabafo: - Ó Roque, com franqueza:

Você nunca quis ver outros países?
- Bem queria, Sr. O'Neill! E... as varizes?

Alexandre O'Neill

DE OMBRO NA OMBREIRA, Publicações Dom Quixote, Lisboa, Setembro de 1969

SALMO

Ninguém nos moldará de novo em terra e barro,
ninguém animará pela palavra o nosso pó.
Ninguém.

Louvado sejas, Ninguém.
Por amor de ti queremos
florir.
Em direcção
a ti.

Um Nada
fomos, somos, continuaremos
a ser, florescendo:
a rosa do Nada, a
de Ninguém.

Com 
o estilete claro-de-alma,
o estame ermo-de-céu,
a corola vermelha
da purpúrea palavra que cantámos
sobre, oh sobre
o espinho.

Paul Celan

SETE ROSAS MAIS TARDE, Antologia Poética, Edição Bilingue, Selecção, tradução e introdução de João Barrento e Y. K. Centeno, Edições Cotovia Lda., Lisboa, 1996

13.8.14

DOBRADA FRIA

Na carruagem-restaurante tive
a mesma sorte do outro poeta:
serviram-me a viagem
como dobrada fria.

Mas não pude protestar:
foram rasgando folha a folha o livro
de reclamações,
para embrulhar as sandes.

E comi frio.

Ah, que comboio é este,
que comboio, que combate
tão perdido.

A. M. Pires Cabral

QUE COMBOIO É ESTE, Edição Teatro de Vila Real, Dezembro de 2005

12.8.14

AUTOCATACLISMOS

1


entram no ninho por um lado              põem os ovos
saem por outro                                    tiram os que lá estavam
cucos profissionais                             são maioria absoluta


Alberto Pimenta

AUTOCATACLISMOS, Pianola, Lisboa, 2014

10.8.14

O MENOS VENDIDO

Custa muito
pra se fazer um poeta.
Palavra por palavra,
fonema por fonema.
Às vezes passa um século
e nenhum fica pronto.
Enquanto isso,
quem paga as contas,
vai ao supermercado,
compra o sapato das crianças?
Ler seu poema não custa nada.
Um poeta se faz com sacrifício.
É uma afronta à relação custo-benefício.

Ricardo Silvestrin

colhido no blogue, Rua das Pretas.

9.8.14

[hoje, dia de todos os demónios]

hoje, dia de todos os demónios
irei ao cemitério onde repousa Sá-Carneiro
a gente às vezes esquece a dor dos outros
o trabalho dos outros o coval
dos outros

ora este foi dos tais a quem não deram passaporte
de forma que embarcou clandestino
não tinha política tinha física
mas nem assim o passaram
e quando a coisa estava a ir a mais
tzzt... uma poção de estricnina
deu-lhe a moleza foi dormir

preferiu umas dores no lado esquerdo da alma
uns disparates com as pernas na hora apaziguadora
herói à sua maneira recusou-se
a beber o pátrio mijo
deu a mão ao Antero, foi-se, e pronto,
desembarcou como tinha embarcado

Sem Jeito Para o Negócio

Mário Cesariny 

CESARINY UMA GRANDE RAZÃO os poemas maiores, Assírio & Alvim, Lisboa, 2007

8.8.14

NA PRAIA

Raça de marinheiros, que outra coisa vos chamar,
senhoras que com tanta dignidade
à hora que o calor mais apertar
coroadas de graça e majestade
entrais pela água dentro e fazeis chichi no mar?

Ruy Belo

HOMEM DE PALAVRA(S), Publicações Dom Quixote, Lisboa, Janeiro de 1970

6.8.14

CEDO OU TARDE

Devias saber
que é sempre tarde
que se nasce, que é
sempre cedo
que se morre. E devias
saber também
que a nenhuma árvore
é lícito escolher
o ramo onde as aves
fazem ninho e as flores
procriam.

Albano Martins

ESCRITO A VERMELHO, Campo das Letras, Editores, S. A., Porto, 1999

O ÚLTIMO POEMA

Não sei quem me manda a poesia
nem se Quem disso a chamaria.

Mas quem quer que seja, quem for
esse Quem (eu mesmo, meu suor?),

seja mulher, paisagem ou o não
de que há preencher os vãos,

fazer, por exemplo, a muleta
que faz andar minha alma esquerda,

ao Quem que se dá à inglória pena
peço: que meu último poema

mande-o ainda em poema perverso,
de antilira, feito em antiverso.

João Cabral de Melo Neto

Olhos de Orfeu, DOZE POETAS NO PORTO, organização e prefácio de António Roberval Miketen, Associação dos Jornalistas e Homens de Letras do Porto, Dezembro de 1985

1.8.14

MÉTRICA

     para o António Barahona


Sufi-
ciência de mão: o saber
cantar o sôpro, partir
com igual lume e rigor,
engenho e arte,
o verso, a sílaba, o pão.

Ricardo Álvaro

Telhados de Vidro, N.º 19 . Maio . 2014, Averno, Lisboa

24.7.14

[há o bigode caído e]

[a joão ubaldo ribeiro]


há o bigode caído e
redondo dos lados;
o teu olhar achinesado
compreensivo, escuro
azulado
esperançoso.
há o brilho pátrida
na tua testa;
dentes (os) sorrindo para aqui.
o pescoço reptilizante
a camisa que foi azul.

teus cabelos escasseiam;
teu sorriso - em letras -
talvez se eternize...

Ondjaki

DENTRO DE MIM FAZ SUL Seguido de ACTO SANGUÍNEO, Editorial Caminho, 2010.

21.7.14

MORTIFICAÇÃO

A folia dos Santos é a da poesia
Vagarosamente entregue às iluminações,
Ao tormento da devoção,
À sintaxe das orações difíceis, talvez não lhes baste repeti-las.
Uma peregrinação pungente de intenções
Reconhecendo a imperfeição
Como pena perpétua.

José Emílio-Nelson

Bacchanalia seguido de Como Falsa Porta [TEOLOGIA CULPOSA], Edições Sem Nome, 2/2014

17.7.14

Cicatrizes

Olhar as rugas, ver
as cicatrizes que o rosto
desenrola sulco a sulco:

sentir do corpo outrora
agora um vulto de quase
descarnadas as raízes.

© Domingos da Mota


5.7.14

COMPRIMIDO VI

Erva daninha


Não tiveste ainda tempo de
comemorar a vitória sobre
a corriola e já estás de novo
em guerra agora com o escalracho
Preocupado com as beringelas
os tomates os pepinos de conserva
é uma luta inglória a que se
prenuncia A essa erva
outra se seguirá nem que seja
a mais daninha das ervas
- a poesia

Jorge Sousa Braga

A BULA, Correio do Porto, Julho de 2014

2.7.14

O POEMA E A CASA

Paramos devagar entre paredes brancas
Entre mobílias escuras e as janelas verdes
Um longo instante paramos em frente
Das mil luzes e mil estátuas do poente

Sophia de Mello Breyner Andresen

O BÚZIO DE CÓS e outros poemas, Editorial Caminho, SA, Lisboa, 1997

1.7.14

ESTALACTITE

III


Se o poema
analisasse
a própria oscilação
interior,
cristalizasse
um outro movimento
mais subtil,
o da estrutura
em que se geram
milénios depois
estas imaginárias
flores calcárias,
acharia
o seu micro-rigor.

Carlos de Oliveira

MICROPAISAGEM, Publicações Dom Quixote, Lisboa, Setembro de 1969

30.6.14

EDITAL

Foi afixado
nos locais do costume
que É PROIBIDO MENDIGAR.

Logo mão que se descobre
escreveu a tinta por baixo
MAS NÃO É PROIBIDO SER POBRE.

Joaquim Namorado

A POESIA NECESSÁRIA, Cancioneiro, Vértice, Coimbra, 1966

10.6.14

[Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades]

Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades,
Muda-se o ser, muda-se a confiança;
Todo o mundo é composto de mudança,
Tomando sempre novas qualidades.

Continuamente vemos novidades,
Diferentes em tudo da esperança;
Do mal ficam as mágoas na lembrança,
E do bem, se algum houve, as saudades.

O tempo cobre o chão de verde manto,
Que já coberto foi de neve fria,
E, em mim, converte em choro o doce canto.

E, afora este mudar-se cada dia,
Outra mudança faz de mor espanto,
Que não se muda já como soía.

Luís de Camões

Sonetos de Luís de Camões escolhidos por Eugénio de Andrade, Assírio & Alvim, Lisboa, Julho de 2000

4.6.14

Sem nome

Poema para não ler
pois que a cegueira o cobre
com a nudez a valer
e mesmo nu se desdobra
sobre o pulsar de uma sílaba
que se cansa a respirar
e tropeça numa vírgula
à beira de sufocar.
Poema cego que diz
pedra palavra pulmão
e se finca na raiz
que trespassa o coração.
Poema com sede e fome:
poema só: e sem nome.

© Domingos da Mota

Pequeno tratado das sombras, Busílis, Dezembro 2018

12.5.14

À MANEIRA DOS CONTEMPORÂNEOS

Morreu? Agora é Santo.
Todo o canalha merece pompas fúnebres
Mesmo quando do púlpito das administrações com que lhe presenteava a
Situação
Denegria o opositor.
Receberá agora o féretro a evocação sonora da bondade em virtuosos
versos pesarosos.
(As suas vítimas pagam com cinismo lacrimoso a desmesura da sua verve.)
Morreu? Agora é Santo.
Quanta cebola se gasta nessa desgraça?
Por ser o pior deles Vos dispenso de se fingirem crocodilos, carpideiras
dolorosas, como as que verti ao rir de tanto emplastro versejado que os
vates sonham que o morto leia.
Como se no assento etéreo aonde subiu não fosse só cinza e esperassem o
fantasma que em vida traíram por convicções ou por inveja.
Morreu? Agora é Santo.

José Emílio-Nelson

(com a devida autorização, colhido aqui)

8.5.14

Elegia animal

Tantas vezes procuravas
um afago no teu pêlo,
roçagavas e miavas,
pedias colo e ao vê-lo
para o colo me saltavas
e ronronavas feliz;
outras vezes afiavas
as unhas, como quem diz,
nos dedos e mordiscavas
a ferida e a cicatriz;

muitas vezes vigiavas,
com o teu olhar agudo,
a varanda onde as aves
te provocavam, e tudo
com os seus voos rasantes,
instigantes, sobretudo.

Agora não mias mais,
ou se mias é no céu
dos gatos e dos pardais,
mas deixaste aqui um breu
cerrado cujo negrume
não há lume que ilumine,
por muito que outro gato
apareça e nos fascine.

© Domingos da Mota

(poema dedicado ao nosso gato que hoje entrou no ciclo do carbono)