29.1.15

EUGÉNIO

Trouxe para as névoas da cidade
o ouro dos trigais, a brancura 
da cal que os mouros deixaram
por herança, como a nora
que sempre deu água ao seu moinho.
Percorreu as ilhas da história para
britar a pedra, esmiuçar os alicerces,
começando a amar as maresias,
a areia suave, as luzes das arribas,
e quando o coração se lhe partia
escrevia um poema onde o sol
entrava pelos ossos, dourava a saudade
e punha as aves negras a voarem
para longe, estrelas do desgosto
que as nuvens arrastavam para fora
do horizonte. As cintilações
de Setembro reverdecem
o que a memória decantou, o mar
a que a errância da memória
sempre volta. Folhas secas
aparentes formam um tornado
luminoso que bate à sua porta.
E a porta abre-se: O mar está ali.

Egito Gonçalves

Entre mim e a minha morte há um copo de crepúsculo, Campo das Letras - Editores, S. A., Porto, Fevereiro de 2006

21.1.15

PALAVRAS DE PETER HOWSON SOBRE SEU QUADRO 'O AMEIXOAL', QUE EXECUTOU ENQUANTO PINTOR OFICIAL DA GUERRA DA BÓSNIA

Aos primeiros alvores da manhã
o circunscrito silêncio do ameixoal
não é digno de tanta brutalidade -- as crianças
brincam junto à sebe da quinta, os frutos
amadurecem nos ramos, há nuvens
irisadas de sol e vento no céu
de prata e as aves soletram
as casas plácidas, camponesas,
que uma linha azul recorta no horizonte.

Numa árvore, está um soldado
amarrado a um ramo, seminu e castrado,
abandonado à morte, vendo-se muito
bem a ferida aberta e os braços
contorcidos, a indicar o terrível tormento
que a guerra é, aqui, num remoto vale
da Bósnia, ou em outro qualquer lugar,
como primeira e última indignidade.

Velamos o abismo, vemos o corvo
sobrevoar a cabeça do cadáver pungente
e não sabemos o que dizer às crianças
que brincam, tão próximo dos desígnios
da barbárie e tão inocentes que quase apetece,
mais do que admoestá-las pela evidente candura,
meter no quadro os dedos e voltar-lhes a cabeça
para que não possam ver a atrocidade.

Amadeu Baptista

UM POUCO ACIMA DA MISÉRIA, &etc, 2014

19.1.15

SCHUMANN POR HOROWITZ

São herança camponesa, as mãos.
Estas pequenas mãos, de geração
em geração, vêm de muito longe:
amassaram a cal, abriram sulcos
frementes na terra negra, semearam
e colheram, ordenharam cabras,
pegaram em forquilhas para limpar
currais: de sol em sol nenhum
trabalho lhes foi alheio.
Agora são frágeis: frágeis, delicadas,
nascidas para dar corpo a sons
que, noutras épocas, outras mãos
se obstinaram em escrever como
se escrevessem a própria vida.
Ao vê-las, ninguém diria que
a terra corria no seu sangue.
São mãos envelhecidas, mas no teclado
são capazes do inacreditável: juntar
nos mesmos compassos o rumor
dos bosques em setembro e os risos
infantis a caminho do mar.

Eugénio de Andrade

Os Sulcos da Sede, Editora Fundação Eugénio de Andrade, Porto, Setembro, 2001

16.1.15

Nocturno

Acendeste o silêncio, 
esse silêncio feito
de  terra e cal, de erva 

chã: o fogo raso, 

rente, radical, afoga,
cega a estrela

da manhã. Silêncio

que transmuda: mineral?, 
sutura vegetal?, talvez

romã. Ou a música

silente, sideral, à beira
da fonte aldebarã.


© Domingos da Mota


(publicado, com variações, na revista Palavra em Mutação, N.º 2Zero, Novembro 2002/Abril 2003)

14.1.15

Da Frágil Sabedoria

B

No subsolo de uma barbárie germinam a forma e a semântica
de outra; alarga-se, olímpico, o campo  de batalha
da usura e da corrupção.

Casimiro de Brito, Da Frágil Sabedoria, Quasi Edições, Outubro de 2001

3.1.15

em cada verso insinuo

em cada verso insinuo
um metal, uma rasura,
uma voz, uma figura,
um avanço e um recuo,

um disparo, a ganga impura
de alegria, raiva, amuo,
ou da irónica amargura
de medir a arquitectura
das luas que não possuo,
e a razão, fria impostura
da romântica aventura.

junto o mais que não excluo,
dia a dia, e que perdura
a estalar o que construo.

Vasco Graça Moura


uma carta no inverno, Quetzal Editores, Lisboa, Março de 1977