30.9.17

A estação impossível

O poema exprime-se em frases entrecortadas
linhas da corrente, irrisórias explosões
mas espera qualquer coisa
suficientemente brilhante
qualquer coisa
para lá dos caudais escoados
que no alto erga
a estação impossível
esse momento em que a língua dos homens
não possa mais mentir

José Tolentino Mendonça

Teoria da Fronteira, Assírio & Alvim, Maio de 2017

15.9.17

SEGUNDO RETRATO

De cerúleo gabão, não bem coberto,
Passeia em Santarém chuchado moço,
Mantido às vezes de sucinto almoço,
De ceia casual, jantar incerto:

Dos esburgados peitos quase aberto,
Versos impinge por miúdo e grosso;
E do que em frase vil chamam caroço,
Se o quer, é vox clamantis in deserto:

Pede às moças ternura, e dão-lhe motes!
Que tendo um coração como estalage,
Vão nele acomodando a mil pexotes:

Sabes, leitor, quem sofre tanto ultraje,
Cercado de um tropel de franchinotes?
É o autor do soneto -- é o Bocage!

Bocage

POESIAS, Os Grandes Clássicos da Literatura Portuguesa, Colecção dirigida por Vasco Graça Moura, Editora Planeta DeAgostini, S.A., Lisboa, 2003

14.9.17

a escrita - Paulo da Costa Domingos

MEDIDAS TOMADAS


A fina película que aparta
da Igreja o Estado, propícia
aos líquidos conteúdos, ao alívio
do tenso músculo, às
ideias feitas, rompeu
e o verbo se fez carne
e a carne, apetecível, encheu-se
de um pó e friccionou-se com
os santos óleos, e...
a Humanidade é aquilo
que hoje bem sabemos.

Paulo da Costa Domingos

a escrita, &etc, Lisboa, Março de 2010

12.9.17

DE LONGE

Vêm de longe.
Sobre as mãos, sobre o chão caem.
Nada pode detê-las.
Entram pelo sono: redondas
grossas amargas.
E cintilantes.
Estrelas. Ou lágrimas.

Eugénio de Andrade

PEQUENO FORMATO, edição fora do mercado destinada aos amigos da Fundação Eugénio de Andrade, Porto, Fevereiro de 1997

2.9.17

Universidade de verão

Uivos, latidos,
pios, crocitos
& cacarejos,

guinchos & gritos
graves & agudos,

quem os ateia,
incita o palco
e a plateia?


Domingos da Mota

1.9.17

POSTERIDADE

Um dia eu, que passei metade
da vida voando como passageiro,
tomarei lugar na carlinga
de um monomotor ligeiro
e subirei alto, bem alto,
até desaparecer para além
da última nuvem. Os jornais dirão:
Cansado da terra poeta
fugiu para o céu. E não 
voltarei de facto. Serei lembrado
instantes por minha família,
meus amigos, alguma mulher
que amei verdadeiramente
e meus trinta leitores. Então
meu nome começará aparecendo
nas selectas e, para tédio
de mestres e meninos, far-se-ão
edições escolares de meus livros.
Nessa altura estarei esquecido.

Rui Knopfli

USO PARTICULAR (POEMAS ESCOLHIDOS) com prefácio de António Cabrita, do lado esquerdo, Coimbra / Fundão, Julho de 2017