28.1.18

ELOGIO DA MAÇÃ

Elogias a maçã,
a textura, o perfume, a cor.
Prevejo um sentido para a solidão das coisas,
escrevi, há uns anos, assim, sem pensar.
Agora as mesmas palavras ganham significados terríveis,
verdadeiros.

Luís Filipe Parrado

NERVO/1 colectivo de poesia, Janeiro/Abril 2018, Editora Maria F. Roldão

27.1.18

A corda

Não perceberam,
não ouviram bem.
Cada um ia
na sua corda
a equilibrar-se.
Cruzaram-se e
empurraram-se.
Insultaram-se.
Traíram-se.
Amaram-se
um pouco
por engano
às vezes?
Quem sabe?
A corda partiu-se,
ficou só o vazio
para pôr os pés.

(SB, Set. 6, 2006)

João Camilo

Eufeme magazine de poesia n.º 6 Janeiro/Março 2018

25.1.18

DISJUNTIVA

Ter um gato no colo ou
vestir uma criança mudar uma cama
de lavado ou fazer uma canção
é muito mais belo
do que carregar uma arma dar pontapés numa bola ou
pilotar um motor ruidoso. Só que há
pouca gente para dar por isso.

Inês Lourenço

TELHADOS DE VIDRO  N.º 22 . NOVEMBRO 2017, Averno, Lisboa

20.1.18

MIRADOURO DE S. SALVADOR DO MUNDO

Quem trouxe o inferno para aqui
e o converteu em serrania
talhada, retalhada
de vastidões, fundões e penedia?

O pensamento gela nas palavras...

António Cabral

Poemas durienses, Prefácio de A. M. Pires Cabral, OPERA OMNIA - Edição, Distribuição e Comercialização de Livros, Guimarães, Novembro 2017

19.1.18

ANTÍSTROFE

Essa que um dia disse "fosse eu 
mais atenta aos sons e ouviria
gorgolejar a água", agora,
das árvores, ela ouve
o eco da folhagem sem o movimento.
Das ondas, escuta
a absoluta linha silente do horizonte.
De Bóreas, ela sabe 
que o inaudível vário vento
no que é diverso traz o mesmo.
E ouvinte de leitor, alheio e seu,
ela ouve o som das suas letras
e aprende que os silêncios breves
somente são um eco das palavras
e que o total silêncio é no Todo
o máximo eco para que tende a voz.

24/5/94

Fiama Hasse Pais Brandão

CANTOS DO CANTO, Relógio D'Água Editores, 1995

14.1.18

METAFÍSICA

No limiar da consciência
um deus espreita. É impalpável
e frio e não é omnipotente
ou omnipresente: Espreita
e facilmente se vence
ou ilude. Não promete
a vida eterna mas lembra
a silenciosa certeza
da morte eterna.
É lúcido e não metafísico,
não existia antes de nós,
mas em nós germina,
em nós vive e connosco
perecerá.
É um deus com que retomamos
diariamente o diálogo interrompido
de Ulisses. Um deus que
surge a horas mortas na
memória do que somos
e não é um deus, mas
o julgamento dos actos que, somados,
somos. É um outro
ser que somos e sendo outro
nos olha com outros olhos
que nossos são. Nos olha
e fita, nos olha e fita
e faz significar olhando.
No limiar da consciência
é um deus que espreita.
E eu, irreligioso,
me confesso ao deus que
em mim me assoma.

Rui Knopfli

Nada Tem já Encanto - Poemas Escolhidos, Selecção, Pedro Mexia, Prefácio, Eugénio Lisboa, Tinta-da-China, Lisboa, Outubro de 2017