27.5.18

10. ANEL DE MOEBIUS À LAREIRA

                (É PRECISO REGAR O AMOR)


Se fosses uma árvore eu chegava lá pelas onze
com um cesto de vime para colher as tuas sombras
e dizias - olha amor, este mar no inverno
é uma lareira onde trocamos palavras de fogo e ar.
E assim dentro das palavras íamos crescendo um
para o outro, os nossos ramos dardejavam em vogais
sonantes e eu sabia de cor a luz entre os teus ramos
como tu aprendias a soletrar os meus pequenos frutos.
Se fosses uma árvore não era preciso dizeres-me
que não há fora ou dentro na topologia dos beijos
como se não tivesses olhado o manto irreversível
dos meus olhos, o meu corpo ondulando até mesmo
ao lugar onde respira. Só dizias - caminho por ti sem
princípio nem fim. Acho que querias dar-me todos os
poros do tempo, tocar-me em palavras macias que
nada esperam. Ficávamos a ver o ar quente subir
pleno de graça, talvez nos beijássemos porque o amor
gosta de lábios e saíamos sempre junto ao mar.
E dizias: - chega-te a mim, as formigas são vorazes
de água e não quero que este amor murche de estio.
Sacudíamos as crinas, o dorso, o quadril redondo como
deus o fez e sabias que o meu corpo só se deita no teu
corpo com aves esvoaçando pelo anel de Moebius:
objecto magnífico em que nascemos cada dia.

Rosa Alice Branco

Traçar um Nome no Coração do Branco, Assírio & Alvim, Porto, Maio de 2018

25.5.18

COMENDO UMA CEREJA

Como uma cereja e,
Comendo a cereja, o meu corpo
Pede as cerejas todas do mundo,
Mas não posso comer as cerejas todas do mundo,
Pois faltam-me as cerejas que comeram
Sócrates, Hipasos de Metaponto
E os velhos camponeses da Gália,
Ou até os escravos de Roma.
Assim, como uma cereja
E deixo o gosto de a comer
Ficar em mim pelo gosto
De todas as cerejas que possa haver.
Uma cereja como todas as cerejas,
Uma cereja por todas as cerejas.

Manuel Resende

Poesia reunida, Posfácio de Osvaldo M. Silvestre, Edições Cotovia, Lda., Abril de 2018

24.5.18

[Sobre o musgo escuto]

          4.

Sobre o musgo escuto
Pedras, digo

- estranha voz esta,
a do surdo.

Aurelino Costa

GADANHA [Sol & Locus], Modo de Ler - Centro Literário Marinho, Porto, 2018

20.5.18

Melros

Emigrados do campo,
deixaram-se ficar no burgo,
desde as primeiras casas
do tempo dos romanos.
Foram-se juntando outros
com o crescer dos lares e da gente,
perseguidos por fogos da floresta
e pela gula de bagas doces.
Frutificaram,
multiplicando-se, à imagem do nosso
Génesis, 1:28.
Na primavera fazem o ninho
entre as camélias,
e cantam, assobiam e saltitam,
e, velhacos, vão-me às cerejas todas.

Nuno Dempster

NA LUZ INCLINADA, Companhia das Ilhas, Lajes do Pico, Março de 2014

14.5.18

CRISE DE FÉ

Quebrou-se-me um mealheiro.

Dentro de mim
já não tilintam
as moedas
dos teus olhos.

Ana Paula Inácio

ANÓNIMOS DO SÉCULO XXI, Averno | 2016